sábado, 4 de dezembro de 2010

Parte 9




Com vocês, Kant: "Em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas somente sobre nosso sentimento; o qual, pois, colocamos a fundamento, não como sentimento privado, mas como sentimento comunitário1".

A comunicabilidade universal da arte é seu aspecto mais fascinante e, ao mesmo tempo, mais agressivo. Quando eu julgo belo um objeto, afirma Kant, estou exigindo que todo mundo também deva achá-lo. Não seria a incompreensão sobre esta exigência radical um dos fundamentos da violência fratricida que vem sacudindo a humanidade desde seus primórdios?

"O juízo do gosto imputa o assentimento a qualquer um, e quem declara algo belo quer que qualquer um deva aprovar o objeto em apreço e igualmente declará-lo belo2", observa o filósofo. Argumenta ele que, sem esta exigência universal, teríamos uma miríade caótica e fragmentada de juízos estéticos e, logo, não haveria arte. Por outro lado, é interessante pensar a influência desta exigência universal sobre a história, servindo de elo que uniu civilizações distintas sob as mesmas égides estéticas; para logo em seguida ser mote para dissenções trágicas entre as mesmas.

A universalidade é uma condição in abstracto da arte, visto que os homens raramente emitem julgamentos estéticos puros, ou seja, isentos de interesses alienígenas à conformidade a fins dos objetos. Além disso, não se pode confundir a universalidade com a interpretação conceitual de cada pessoa perante a obra de arte.

Deve-se distinguir o caráter universal do juízo estético das condições rigorosamente subjetivas e singulares em que ele se desenvolve no indivíduo. Quer dizer, o juízo estético nunca poderá nascer de uma interferência externa, como que de um consenso. Sua universalidade vem de dentro, de cada um. "Se alguém não considera belo um edifício ou uma vista ou uma poesia, então, em primeiro lugar, ele não se deixa constranger interiormente à aprovação nem mesmo por cem vozes, que o exaltem em alto grau2".

Um assentimento geral sobre um objeto não significa que seja universal, visto que é comum haver uma "onda" em determinada época ou sociedade, em que as pessoas, influenciadas por interesses diversos, sentem-se inclinadas a considerar tal obra bela. Sua universalidade será determinada apenas diacronicamente, quando as circunstâncias que obscureciam a possibilidade de um juízo estético claro sobre aquele trabalho não existirem mais, permitindo uma leitura livre de interesse.

A filosofia kantiana nos leva a concluir que o juízo estético origina-se nas regiões mais profundas do espírito humano, anteriores inclusive ao uso da linguagem. Por isso artistas da modernidade, como Matisse, Picasso e Modigliani encantaram-se tão intensamente com a arte africana, ao identificar ali preocupações formais estéticas avançadíssimas, embora produzidas por sociedades tecnologicamente atrasadas.

Encontramos também aí uma explicação sobre o porque a arte nem sempre avança no sentido de se modernizar, de incorporar ou refletir as novas tecnologias. Muitas vezes, a arte parece retroceder a tempos mais antigos, a formas mais simples de expressão, porque o seu fundamento não são os conceitos, sujeitos a evolução das tecnologias, e sim as intuições do juízo estético, as quais flertam frequentemente com arquétipos milenares, temores infantis e delírios esquizofrênicos.

Considerando que a natureza ou, se preferirem, Deus, a tudo conferiu uma função perfeita na ordem natural do mundo, esta exigência de universalidade encontrada no juízo estético cumpriria um mandamento essencial, que seria evitar a desagregação cultural das civilizações. A arte seria um fator de união, “um protocolo4”, uma corda amarrando os extremos culturais da humanidade. Houve tempo em que o planeta namorou o holocausto; dedos nervosos alisavam o botão fatal que daria fim a vinte mil anos de guerras, vinho e poesia; de um lado, capitalistas agressivos patrocinando golpes de Estado; de outro, comunistas sodomizando a liberdade; mas todos liam e apreciavam a obra de Dostoiévski; talvez este fato, dentre outros similares, tenha ajudado na superação dos momentos mais dramáticos, ao demonstrar a irmandade primeva que une todos os povos.


Notas:
1 Idem. & 22. p.85;
2 Idem. & 19. p.83;
3 Idem. & 33. p.130;
4 Ver citação de Barbero, na p.19.