sábado, 4 de dezembro de 2010

Parte 7




O interesse do tranquilo e afável professor pela estética aparece bem antes dele publicar a obra que lhe imortalizaria, a Crítica da Razão Pura. Aos quarenta anos (em 1764), onze anos antes, portanto, do surgimento da Crítica (1781), Immanuel Kant publica um ensaio intitulado Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, no qual já se observam alguns conceitos e exemplos que, mais tarde, usará na sua última grande obra, o terceiro livro da trilogia que varreria definitivamente os resquícios de medievalismo para os desvãos da história. Refiro-me à A Crítica da Faculdade do Juízo. Kant tinha sessenta e seis anos, mas a vitalidade e o frescor de seu pensamento não apenas se mantinham intactos, como parecem ainda mais fortes.

É na Crítica, portanto, que centraremos nossa atenção, porque somente nela Kant desenvolverá plenamente os conceitos essenciais e até hoje revolucionários do juízo estético.

A habilidade psíquica correspondente ao gosto é a faculdade do juízo, a qual, segundo Kant, é uma função mental inata, uma espécie de intuição, que usamos o tempo inteiro para compreendermos a realidade. Ele explica que a razão e o entendimento nunca dariam conta da complexidade natural das coisas, e que, sem a faculdade do juízo, transitaríamos pelo mundo perplexos e confusos. A faculdade do juízo é responsável por ativar e desativar uma outra parte de nossa mente essencial à compreensão da realidade, a imaginação. A faculdade do juízo seria uma espécie de pianista cujas mãos correspondem ao entendimento e à imaginação. A música que ele toca seria algo parecido com o que entendemos por liberdade1.

Explicando de outra forma: nunca seríamos capazes de compreender o mundo apenas com o nosso entendimento, porque a natureza ao nosso redor é demasiadamente complexa. Como entender o sol, o ar, a água, a grandeza das montanhas e dos mares, as tempestades, e as tragédias? O entendimento pede explicações detalhadas sobre tudo mas esse tudo responde apenas com um sorriso esnobe e enigmático. Conseguintemente, a faculdade de juízo apela à nossa infinita imaginação, associando-lhe as ferramentas intuitivas do entendimento, daí resultando uma visão razoável e tranquilizante da realidade que nos circunda.

Por não usar o entendimento, o gosto não considera os conceitos, e fundamenta-se numa apreciação intuitiva; também usa o entendimento, mas de forma apenas acessória, reflexiva. O entendimento é o espelho no qual projeta as imagens fornecidas pelas sensações e enriquecidas pela imaginação.

O juízo estético é o uso desta faculdade na apreciação do belo e do sublime. A modernidade (ou quase pós-modernidade) da estética kantiana patenteia-se, em primeiro lugar, pela revolução cartesiana em centrar a verdade do objeto no eu, no subjetivo, e não no objeto, no ser em si, que é inacessível. Ou seja, a beleza reside em nosso olhar e não no objeto. Mas cuidado! O pós-modernismo é adversário mortal de Kant, visto que ele deixou bem claro sua crença na impossibilidade de uma avaliação conceitual da obra de arte. Existe, naturalmente, conceitualização da arte, mas muito posterior à intuição estética e sem nenhum valor determinante num julgamento artístico honesto e profundo. Outra diferença em relação aos pós-modernos - conceitualistas e subjetivistas radicais - refere-se ao valor do objeto: embora a beleza exista e aconteça no sujeito e não no objeto, ela é sempre uma reflexão do brilho emanado pelo objeto - enquanto fenômeno, claro.

Daí chegamos ao momento de abordar o trecho mais difícil e talvez o mais interessante da estética kantiana.


Notas:
1 “A faculdade do juízo torna possível a passagem do domínio do conceito de natureza para o de liberdade”, Kant, Crítica da Faculdade do Juízo. Introdução. IX. p.40.