sábado, 4 de dezembro de 2010

Parte 6




Cultura é um termo abrangente, englobando a arte, a ciência e os costumes. Neste ensaio, ateremo-nos à arte, à dimensão estética da cultura, procurando mostrar que ela, frequentemente, extrapola seus limites e invade a comunicação social e, através desta, a política.

Isso porque a arte é a forma mais nobre e mais universal de comunicação, a qual sempre abrigará uma dimensão estética, que se torna mais e mais importante na proporção do amadurecimento dos meios e dos públicos.

Ao desfazer mitos sobre "arte culta" e "arte de massas", Jesús Martin-Barbero nos dá algumas pistas sobre a relação dialética entre a arte, comunicação de massa, política e tecnologia. Conta Barbero o caso de Eugene Sue, cujo romance "Os Mistérios de Paris", publicado em 1842, foi lido como uma literatura "revolucionária", embora tal objetivo estivesse longe das intenções do autor.

O escritor, no entanto, será influenciado por esta leitura e incorporará elementos ainda mais explicitamente políticos à sua obra. Era o tempo dos folhetins, romances de amor e aventura, devorados avidamente pelas classes médias pobres, as quais, em virtude da popularização de livros e periódicos proporcionada pelas novas tecnologias de impressão, incorporavam-se rapidamente ao mercado literário. Barbero explica como editores criaram uma tipografia inovadora, com letras maiores, para incorporar os novos leitores. O livro será dividido em capítulos menores, as frases encurtar-se-ão, sempre com o objetivo de facilitar o acesso a um público com hábitos ainda mínimos de leitura.

Essas mudanças impactarão profundamente a literatura moderna. O movimento romântico, que se estabelece na Europa exatamente por essa época, meados do século XIX, caracteriza-se pela busca de uma linguagem que una o culto ao popular; esta é a sua dimensão mais revolucionária. Analisemos melhor este fenômeno.

Um movimento artístico não brota espontaneamente; em geral, nem é conhecido como movimento senão muito depois; resulta nada mais nada menos que da evolução contínua, embora intermitente, das técnicas e dos conhecimentos humanos; e suas características mais importantes, mais universais, correspondem, muitas vezes, não às suas diferenças em relação a movimentos anteriores ou futuros, e sim ao que os ligam todos entre si, às qualidades permanentes, constantes, das artes.

Em outras palavras, o "populismo" romântico, essa vontade de captar os anseios populares, e expressá-los por uma linguagem que ambicione se tornar um denominador comum da comunidade, é uma qualidade universal da arte, comum a todos os tempos. Não significa, naturalmente, mediocrizar a comunicação estética, e sim selecionar, e combinar, os exemplares mais nobres, belos e raros da fauna linguística e simbólica pela qual transitam todas as classes sociais.

A alta cultura não deveria ser identificada, portanto, a uma manifestação de elite, visto que nem sempre ela representa os interesses das camadas dominantes. Não é a alta cultura que adere à elite, e sim esta que presta homenagem àquela, tentando transmitir aparência de posse. A alta cultura, entendida como arte e ato soberano e livre do espírito humano, não deve ser associada à idéia de dominação. Quando ensino a um grupo de alunos pobres a importância de um escritor como Dostoiévski, não estou lhes impondo um produto de elite; estou lhes oferecendo uma cultura universal. A alta cultura, embora consumida por minorias sincronicamente, converte-se, diacronicamente, em cultura de massa. Os clássicos, com o tempo, são vendidos, em bancas de jornais e sebos, a preços módicos. Os leitores acumulados por Dostoiévski nos últimos dois séculos (proporcionalmente à população leitora mundial de cada época) superam em muito os atuais consumidores de Paulo Coelho; ao longo do tempo, conforme a "moda" for passando, essa diferença deverá se aprofundar ainda mais.

Ironicamente, muitas manifestações artísticas, consumidas sincronicamente como cultura de massa, quase desaparecem com o tempo, tornando-se objeto de culto de minorias, até se apagarem de vez da lembrança das gentes. Fazem o movimento inverso dos clássicos.

Tentarei demonstrar, a partir de agora, que esta comunicabilidade é um dos fatores mais importantes da arte; contarei para isto com auxílio luxuoso de Immanuel Kant que, em sua Crítica da Faculdade do Juízo, inaugura não apenas a estética moderna, mas uma completamente nova visão de mundo.