sábado, 4 de dezembro de 2010

Parte 5



Há um poema de Yeats intitulado No Second Troy, que encerra com os seguintes versos:

Why, what could she have done, being what she is?
Was there another Troy for her to burn?1

Que traduzo assim:

O que ela poderia ter feito, sendo assim?
Haveria mais uma Tróia para ela destruir?

Nesse poema, eu enxergo a inevitabilidade do ser e da história, embora seus biógrafos afirmem que Yeats, em verdade, se referisse à sua amante, Maud Gonne, uma fogosa e atraente irlandesa, envolvida com as agitações nacionalistas e revolucionárias que sacudiam seu país no início do século XX.

Umberto Eco, em “Obra Aberta”, ressalta o poder de síntese da poesia, que consegue transmitir em poucas palavras o que, em prosa convencional, necessitaria de longos e cansativos parágrafos. Uma das qualidades do poema, ou da literatura em geral, é revestir os significantes de uma aura mística, dúbia, que possibilita múltiplas interpretações. Gostaria de usar estes versos, consequentemente, para realizar uma travessia arriscada, migrando da abordagem política presente nos capítulos anteriores, para uma mais propriamente estética. Mas façamo-lo com prudência, para não cair. Para nos ajudar, convoquemos Leviatã ao centro do palco; será sua última apresentação.

Existiram diversos momentos em que nosso monstro demonstrou bom gosto e protegeu e estimulou as belas artes. Entretanto, se uma coisa a história nos ensinou é que não podemos depender da generosidade dos reis. É possível que haja um ditado latino mais ou menos assim: um Julio César, vinte Neros.

Apesar de termos conseguido, através do mecanismo democrático, tirar o poder político das mãos do Leviatã, ou pelo menos conter-lhe os ímpetos mais brutais, não devemos subestimar o risco de abandonar o debate estético a seus arbítrios imprevisíveis. Até porque, como a personagem dos versos de Yeats, ele não tem culpa pelo que é; como nova Helena, ele age inconsciente de sua força e não pode ser responsabilizado pelas civilizações que vier a destruir. Esta inocência, facilmente confundida com liberdade, torna-o mais perigoso e acrescenta-lhe ainda mais poder.

Segundo Roberto Simões, "o valor estético é um regulador básico do comportamento e do pensamento humano, que afeta a postura emocional e volitiva do indivíduo frente a seu meio2". Schiller afirma que a solução do problema político passa pela estética, visto ser "a beleza o caminho que conduz à liberdade". No ensaio intitulado Educação Estética do Homem, Schiller irá fazer outras afirmações que realçam a importância da arte para o vigor político das sociedades. Todas as outras formas de comunicação, afirma Schiller, “dividem a sociedade, pois relacionam-se exclusivamente com a receptividade ou com a habilidade privada de seus membros isolados e, portanto, com o que distingue o homem do homem; somente a bela comunicação unifica a sociedade, pois refere-se ao que é comum3”.

Neste ponto, a arte conecta-se à internet na função de estabelecer uma comunicação fluida e dinâmica entre os povos. Manuel Castells observa que "na cultura da virtualidade real, a comunicação depende em grande parte da existência de protocolos de significados. (...) Em nosso contexto, o mais importante protocolo é a arte".

Entre o significante e o significado, lembra Eco, existe sempre a necessidade de um referente, que constituiria o fundo cultural, a circunstância, o contexto, o nexo estético estabelecido entre a mensagem e receptor. Quando digo “tinha uma pedra no meio do caminho” ou “ser ou não ser”, posso ou não estar me referindo aos poemas de Drummond ou Shakespeare e, se os dois pólos (emissor e receptor) os conhecerem, agregamos possibilidades novas de interação comunicativa.

Castells acrescenta que "a arte sempre foi um construtor de pontes entre as expressões diversas, contraditórias, da experiência humana. Mais do que nunca, esse poderia ser o seu papel fundamental numa cultura caracterizada pela fragmentação (...) A falta de significado comum poderia abrir caminho para a alienação generalizada entre os seres humanos - todos falando uma língua diferente, construída em torno de hipertextos personalizados. (...) Num mundo de espelhos quebrados, feito de textos não-comunicáveis, a arte poderia ser, sem nenhum programa deliberado, simplesmente por ser, um protocolo de comunicação e uma ferramenta de reconstrução social - por sugerir, através da ironia que desarma ou da pura beleza, que ainda somos capazes de estar juntos; e ter prazer nisso. A arte, cada vez mais uma expressão híbrida de materiais virtuais e físicos, pode ser uma ponte cultural entre a Net e o eu4."

Os trechos citados acima, somados aos argumentos que apresentarei a seguir, demonstrarão que Leviatã, com seus instintos infalíveis, encontrou o sítio ideal para viver e prosperar. A partir daqui, despedimo-nos de nossa querida metáfora, o monstro pelo qual não pudemos evitar sentir afeição, porque, apesar de sua violência desmedida e astuciosa maldade, não deixa de ser um produto humano e, como tal, digno da mesma infinita tolerância com que Deus nos perdoa, ama e compreende.

Notas:
1 No Second Troy

By Yeats

WHY should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great.
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done, being what she is?
Was there another Troy for her to burn?

Tradução:
UMA ÚNICA TRÓIA
Como irei culpá-la pela tristeza
Com que encheu meus dias, ou que ela ao fim
Tenha ensinado a dureza aos incultos,
Ou lançado contra o grande o pequeno,
Em quem só a coragem iguala a vontade?
Que causa podia acalmar esse espírito
Que a nobreza fez simples como fogo,
Bela como um arco esticado — coisa
pouco natural numa idade assim –
e solitária como num altar?
Que lhe restava, se ainda era ela,
Sem segunda Tróia para queimar?
(trad. Rafael Rocha Daud)
http://8flagrantes.wordpress.com/category/colaboracoes/
2 A Educação Estética do Homem. Schiller. Carta XXVII;
3 Simões, Roberto Porto. Função Política das Relações Públicas. Cap.16. A ética e a estética;
4 Castell, Manoel. A Galáxia da Internet. Cap.Multimídia e a Internet: o hipertexto além da convergência. p.168.