sábado, 4 de dezembro de 2010

Parte 10 - Conclusão




Agosto de 1969. Bethel, área rural do estado de Nova York. Mais de 500 mil pessoas, vindas de todas as partes dos Estados Unidos, haviam passado o fim de semana assistindo aos shows. Nesta manhã de segunda-feira, a maior parte já se fora. Restavam aproximadamente 35 mil pessoas quando Jimi Hendrix subiu ao palco. Caberia a ele encerrar um dos festivais mais importantes da história do rock 'n roll e certamente o evento mais significativo do que ficou mundialmente conhecido por "contracultura".

Após doze músicas, recebidas sem muito entusiasmo pela platéia, exausta depois de três dias de pauleira, Hendrix toca os primeiros acordes de Star Spangled Banner, o hino nacional americano. Inicia quase convencionalmente, mas logo introduz pequenas dissonâncias, lançando suspeitas no ar. Daí começam as distorções mais explícitas. Notas longas, agudas, perfazem uma curva que lembram o ruído de mísseis cruzando os céus e explodindo no chão. A referência à guerra do Vietnã, contra a qual os movimentos sociais que compunham a "contracultura" faziam intensa campanha, é inevitável. Trata-se de uma típica "música de protesto".

Entretanto, se ao invés do famoso guitarrista negro vestindo roupas coloridas, ao invés daqueles jovens de cabelos compridos dançando maníacamente, tivéssemos um músico branco e olhos azuis trajando roupas militares e um público composto por oficiais e recrutas do exército americano, o significado daquela música poderia adquirir o sentido oposto. Considerando que a letra do hino faz referências explícitas a bombas e batalhas enfrentadas pelos soldados americanos na guerra pela independência, as geniais sonoplastias poderiam ser perfeitamente associadas às lembranças das lutas patrióticas, incluindo aí a I e a II Grandes Guerras, e mesmo a Guerra do Vietnã, vista porém sob uma ótica antivietcong.

Tais considerações me levam a duas conclusões:

1) Elas ajudam a provar o caráter universal da arte, ou seja, seu poder comunicacional de unir extremos ideológicos, através de signos genéricos que remetem antes ao ânimo da alma do que a conceitos. Tanto generais conservadores como hippies pacifistas podem apreender, e interpretar criativamente segundo suas próprias referências, mensagens de luta, resistência, audácia. Esse ponto em comum não deve ser nunca entendido pejorativamente como um "centrão ideológico", mas como região livre do espírito humano, onde reside a esperança de uma civilização mais coesa e unida em seus ideais de justiça.

2) O juízo estético, embora não sujeito a conceitos, insere-se, necessariamente, em circunstâncias históricas, e, portanto, confere à arte um poder, embora involuntário e (em alguns casos) indesejado, de influenciar as escolhas políticas dos homens.

Tais assertivas, por sua importância, merecem ser analisadas mais a fundo. No primeiro caso, trata-se de uma tese que, se levada às últimas consequências, poderia servir como esteio conceitual para elaboração de novas políticas de relações públicas entre nações, com aplicação especialmente oportuna em situações de conflito. Da mesma maneira, uma visão estética madura e corajosa ajudaria imprensa, governos e empresas a lidarem com as inevitáveis divisões ideológicas no interior de uma nação plural e democrática. Esta tese, contudo, encontra hoje adversários em todas as partes. O padrinho Kant já não lhe paga mesada, e ela, para se manter válida, precisa lutar sozinha por sobrevivência. Seus dois maiores inimigos são, de um lado, o marxismo e a teoria da super-estrutura e da cultura dominante; e, de outro, o pós-modernismo, que, ironicamente, apesar de antimarxista e contrário ao discurso classista, não aceitou ou não entendeu os fundamentos kantianos sobre a universalidade artística. Trata-se de uma teoria que precisa - não para ser válida mas para ser aplicada -, como qualquer outra, sobreviver à implacável dialética da história.

O segundo item corresponde a um raciocínio delicado, incômodo, mas do qual não se pode fugir. O artista e o pensador cultural assumem, mesmo à sua revelia, responsabilidades éticas e morais importantíssimas. Não se deve confundir isso, naturalmente, com a obrigação servil de ser um "bom exemplo". Claro que não! Ao contrário! Em alguns casos, o artista cumprirá sua obrigação moral sendo um "mau exemplo". As circunstâncias, especialíssimas e singulares, e a mais soberana liberdade, é que escreverão as regras a serem seguidas, ou rompidas, pelo artista e pelo intelectual, aqui entendidos como livre-pensadores; pois nas democracias avançadas, os livre-pensadores são os heróis.

O fim de conflitos bélicos expressivos e a gradativa democratização dos meios de comunicação trazida pelo advento da internet modificarão o perfil do herói. Na Antiguidade, eram heróis-guerreiros, notabilizados pela força física e destreza no uso das armas. Na Roma e Idade Média, temos heróis políticos, que conseguem articular as alianças militares certas. Nos primeiros momentos da Modernidade, surgem os heróis econômicos, com seu ilimitado poder financeiro para influir nos governos, e que vão ganhar ainda mais poder com a chegada dos novos meios de comunicação. Nesta pós-modernidade, contudo, vemos um resgate dos heróis guerreiros das primeiras civilizações. Sua destreza não é mais militar, mas exclusivamente linguística e filosófica - ou seja, um talento eminentemente artístico, uma verdadeira e clássica "techné", para usar o termo grego originário que designava a habilidade criativa. O artista, embora consciente de que sua arte escapa a qualquer conceitualização ideológica, não poderá fugir à condição de herói moral de seu tempo, mesmo que seja um "herói devolvido", como o personagem derrotado e absurdo de Mirisola1, mesmo que seja um "gauche na vida", como Drummond, porque é ele que guarda a fórmula para dar fim aos intermináveis e detestáveis debates em que se digladiam as instâncias democráticas divergentes - a fórmula da beleza, este ser imperfeito, estranho e humano, diante do qual todos se calam, respeitosos e satisfeitos.


Notas:
1 Mirisola, Marcelo. O Herói Devolvido. Ed.34;
Bibliografia


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