sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Parte 3

Se a imprensa deu voz ao Leviatã, não lhe proporcionou, na mesma medida, um bom ouvido. Durante décadas, nosso monstro aterrorizou as sociedades com sua nova arma, a voz estrondosa canalizada por rádio, jornal e tv; mas surdo ao clamor das multidões. Por ocasião da iminente peleja americana no Iraque, milhões de pessoas, em todo o mundo, foram às ruas, protestar contra uma guerra que não encontrava justificativas nem media consequências. O Leviatã não escutou, ou o som não lhe chegou aos ouvidos na altura condizente à realidade dos fatos, e partiu para o ataque.

A audição do Leviatã, ao que parece, dá o grande salto de qualidade com a invenção da internet, na mesma proporção que dá voz, ou possibilidade de voz, ao homem comum, esse mesmo que criou o Leviatã mas que não podia mais controlá-lo. Nosso Frankenstein agora está completo, com voz e ouvidos; aos poucos, talvez, não mereça mais ser chamado de monstro.

Em outros termos, a mídia, antes do advento da internet, correspondia a uma grande e possante voz, que invadia a casa de todos os cidadãos, e contra a qual não se podia reagir. Havia, nesse processo, uma expansão da individualidade do jornalista, do formador de opinião, que, muitas vezes, agredia o homem comum. Segundo Schopenhauer, o egoísmo, próprio a todo ser humano, tende a ultrapassar o grau de uma simples afirmação, chegando até a negação da vontade de outro indivíduo. Por conseguinte, continua o melancólico alemão, quando afirma a sua vontade, este homem sai dos limites de seu corpo e nega a vontade do corpo alheio. "Tal usurpação sobre os limites da afirmação da vontade de outrem, foi em todos os tempos reconhecida com o nome de injustiça1".

Esse poder conferido à mídia, na medida em que não possibilitava (e, em grande escala, ainda não o faz) aos indivíduos reagirem, ou interagirem, descambou em atos de tremenda injustiça, como os que resultaram no enfraquecimento do governo João Goulart e na legitimação do hediondo golpe de Estado de 1964. Schopenhauer explica que a perpetração de uma injustiça dá-se através da violência, ou da astúcia, ressalvando que "a injustiça cometida por meio da violência não é para seu autor tão grande opróbio como a cometida por meio da astúcia, porque a primeira faz demonstração duma força física que, em qualquer circunstância, se impõe aos homens, enquanto a segunda, com o emprego de caminhos escusos, patenteia a fraqueza física e moral do homem duma só vez; e porque a mentira e a astúcia, nada conseguindo se quem as utiliza não manifesta horror e desprezo por semelhantes coisas, sempre com o escopo de cativar a confiança alheia, o seu triunfo resulta de lhe ser atribuída uma lealdade que não possui2".

Através da astúcia, observa o alemão, insinua-se, na consciência de um indíviduo, motivos simulados, por cuja virtude, tal indivíduo, acreditando seguir a sua vontade, segue a minha. Como o ambiente - continuo citando - "em que se encontram os motivos é o conhecimento, não posso vencer senão falseando o conhecimento, ato que constitui a mentira3".

Na Vontade, todavia, diz Schopenhauer, assenta-se o princípio elementar do mundo, a única luz que podemos confiar na escuridão assombrosa e sem esperanças para onde a filosofia, com seu criticismo radical, conduziu a humanidade. A invenção da internet, cujas implicações profundas ainda serão estudadas por pensadores e acadêmicos, inscreve-se, portanto, na mesma cadeia de causas e efeitos, ditada pela Vontade universal, que produziu as revoluções, a democracia, e o doce-de-leite.



Notas:
1 Schopenhauer, O Mundo Como Vontade e Representação. Cap.A Justiça Humana. p.116;
2 Idem, p.122
3 Idem. p.120