sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Parte 2

Não se deve condenar o Leviatã por essa nova estratégia. Muito menos os chefes da mídia, reféns da extraordinária violência e astúcia do monstro. Um oculista holandês do século XVII, que entendia um pouco de filosofia, observou que "toda coisa procura, na medida de suas possibilidades, perserverar em si mesma1". O Leviatã não pode fugir à sua natureza e, pensando bem, ele sempre manteve o controle sobre a comunicação social, antes, durante e depois do golpe militar, para não dizer em todos os tempos. O holandês mencionado acima afirmava que "o esforço pelo qual toda coisa procura perserverar em si nada mais é do que a essência atual daquela mesma coisa2". A democracia, com seu regime alternado, divisão dos poderes e sufrágio universal, impõe restrições severas aos impulsos do Leviatã, forçando-o a buscar alimentos em mares ainda não mapeados. Não é por outra razão que ele resiste, com tanto furor, à qualquer tipo de regulamentação na mídia.

Aliás, não se pode culpar o Leviatã por nada. Ele é criação do homem e, apesar de sua aparência prodigiosa, no fundo nada mais é do que um escravo. Por vezes rebelde, autoritário, embriagado pelo poder; mas condenado, ad eternum, à exercer sua função de servidor público. O golpe militar de 1964, se analisarmos desapaixonadamente, apesar de ilegal e imoral, foi uma iniciativa de instituições da própria sociedade, criadas por nós mesmos, como o Exército, governadores, a mídia, além do apoio da classe média e dos fazendeiros. A Constituição é apenas uma das convenções que produzem o Leviatã. Sua argamassa real, no entanto, não é feita de papel, timbrado ou não, votado ou não, mas de carne, fome, e ódio.

Segundo o Evangelista, porém, "no princípio era o Verbo"3, e eu concordo. A argamassa do Leviatã pode ser de carne, mas sua alma, a razão de sua existência, reside na linguagem, que organiza o pensamento humano e nossa forma de viver em sociedade. Nada mais conveniente, portanto, para nosso monstro, do que dominar a instância social que mais influencia a linguagem e a comunicação de nosso tempo; ou seja, a mídia.

Longe de mim, todavia, fazer aqui uma preleção moral. Quer dizer, eu pretendo realizar sim, mais adiante, algumas incursões nesse terreno, mas não no sentido de condenar o poder midiático. Roberto Marinho agiu corretamente quando aceitou Leviatã como sócio de suas empresas; até porque foi ele, Roberto, quem fez o convite. Pela mesma razão, também peço aos leitores que evitem qualquer leitura ideológica. Nossa abordagem é unicamente filosófica, ou, para ser mais preciso, schopenhaueriana, segundo a qual à Vontade é sempre assegurada existência, vida e poder. Se há quem se sinta prejudicado pelo mundo como ele é, que lute por mudá-lo, despertando a Vontade adormecida em si mesmo; ou procure entender porque o mundo é assim, e conforme-se; ou se agarre às pernas do Leviatã e o acompanhe para onde ele for. Não vale culpar o Roberto Marinho.


Notas:
1 Spinoza, Ética, Das afeições, Theorema VI;
2 Idem, Theorema VII.
3 Evangelho Segundo São João. Prólogo, Vers.1